Socceroos
Cruzamos novamente as fronteiras invisíveis do futebol brasileiro, desta vez na Bahia, guiados pelo jornalista Irlan Simões. Dos conflitos indígenas até a chegada dos portugueses, onde hoje é Porto Seguro e o início da colonização, com a exploração açucareira.
Passamos pelo esporte da Boa Terra, com seus atletas campeões e, claro, a dupla Ba-Vi, os dois principais clubes do estado. Dos campos para a independência baiana, a exploração de petróleo e os dias de hoje, com destaque para as revoltas baianas, como a Conjuração que faz 220 anos em 2018.
Medo da própria torcida é o que o cara gay vive em um estádio de futebol. Medo que a descubram e medo de todo rosário de agressões desfiado após a descoberta. Time de viado é o do lado de lá, grita o lado de cá. Do lado de cá só se aceitam guerreiros, machos, marrentos, aquele rol de palavras que, de ouvir, são de imediato coladas à heterossexualidade masculina. Nada que lembre coisa de mulher é permitido, que vira logo viadagem, que desmerece, é a pior das ofensas, desperta a vontade de resolver no murro.
É o que o palmeirense William de Lucca viveu até não aguentar mais. Mandou a real: “Tem viado no Palmeiras também, sabiam?” Olha que verdade dolorida de ouvir. E parte da sua torcida passou a ameaçá-lo de morte. “Viado aqui não!” A mesma frase que a torcida corintiana carregou em uma faixa, quando Emerson Sheik postou uma foto dando um selinho no amigo.
“Viado aqui não!” é o berro geral nesse jogo pré-estabelecido em que os machos se veem mais unidos e mais fortes. Como que acorrentados ao ideal de superioridade. Agora mais que nunca. Perceberam que não é bem assim, que nunca foi bem assim. Entre tantos torcedores e tantos jogadores, impossível nunca o manto sagrado ter sido usado por gays, quem sabe, até ídolos.
Viado lá e cá sempre houve. Basta pesquisar sobre torcidas organizadas LGBTs pelo Brasil. Mas geral faz de conta que não, que eram excentricidades isoladas e desconsideráveis, que futebol é coisa de macho, só de macho, unicamente de macho. Sabem que houve árbitro gay. Sabem que tem aquele amigo gay que vai ao jogo junto. Sabem que tem aquele gay famoso que postou foto comemorando o título. Mas geral faz de conta que não.
Geral quer manter o viado no espaço do insulto. Continuar com o grito de “Todo viado que eu conheço é… (o lado de lá)” quando tem um bocado de viado do lado de cá. Geral quer ofender e desconhece palavra melhor para o serviço.
Aí surge quem bote a boca no trombone da rede social e diga: “Tem viado aqui com vocês. E viado não é ofensa. Não é ser pior que macho não”. Geral bugou.
Chamar de viado depende da intenção, do sabor que se dá à palavra. Já fui muito criticado por usar “viadagem”, “bicha”, “miga” para me referir a gays. Entendo. Sempre é um debate áspero. E é para ser mesmo. São palavras petardos. Moldadas para bater e tirar sangue. Cunhadas em sua origem para nos humilhar e reduzir. Mas linguagem, como sempre defendo, é contexto.
Coloque uma entonação de voz depreciativa e até as corretas, as aceitas, “gay” e “homossexual” ganham um tom pejorativo. “Não se junte com aquele gay”, “Esse povinho homossexual quer dominar o Brasil”. Tem ou não tem desprezo e preconceito?
Viado sempre assustou gays brasileiros, vai continuar assustando, por não ser a palavra em si que dói, mas como vem recheada. Até a grafia ficou especial. Ganhou um “i” no lugar do “e”, se solidificou assim, para mostrar, mesmo que inconscientemente, que o gay é, digamos, ainda menor que o bicho.
Viado é a macheza ao contrário, uma ameaça à estética e ao comportamento esperado de quem nasce com um pênis. Traz uma rebeldia.
Acompanhe: Viado reforça que no topo do ecossistema está o macho e a cesta de produtos que ele representa. Macho: superior, valente, determinado, masculino. Viado: desonroso, covarde, desprezível, risível, feminino. Quando se elogia com “macho” se celebra os papéis bem definidos e aclamados de macho e fêmea. Quando se xinga com “viado” se faz o mesmo. Ambas as situações mantêm o status quo e aplaudem o preconceito. É a homofobia gritando gol.
É o hétero no protagonismo, que se dá um deslize não escapa do “Huuuuuummmm!” da desconfiança. É o gay nos bastidores, na autopatrulha, passando atestado de masculinidade para ser mais aceito, não fazer vergonha, receber parabéns por ser decente e conseguir sobreviver sem um arranhão. É todo homem vigiando a voz, o jeito de sentar, os quadris, as munhecas, seus e alheios. É o gay feminino empurrado para longe para não queimar o filme. É o orgulho hétero tendo um concorrente ainda mais danoso: o orgulho de parecer hétero.
“Viado”, “bicha”, “baitola” carregam um ranço inegável. Reciclar requer esforço e consciência de que continuarão ferindo em certas ocasiões: uma torcida inteira cantando como chacota, por exemplo. Mas se apropriar da fala opressora e torná-la sua é uma estratégia de luta bem interessante. Esvaziar o discurso do significado antigo é produtivo, ainda que demorado. O impacto da fala ainda machucará, ainda é contexto. “Todo gay que eu conheço é…” Mudou muito?
“Seu viado!”, sem dúvidas, ainda assusta. Levar pela cara ainda arde. A inhaca está longe de sair, de não incomodar, de fazer de conta que inexiste.
Mas “gay” também foi uma palavra usada para oprimir. “He is a gay guy”, desdenhavam. O que a militância dos EUA fez? Trouxe a palavra para si. Desmontou-a de tal modo que hoje dá nome à comunidade por lá. Aconteceu o mesmo com “queer”. É garantia de limpeza para “viado”? Não. Nem todo o Vanish dos supermercados dá certeza de que dará certo.
Talvez nem seja indicado lavar demais. O excesso de desinfetantes na higienização, tantas vezes, sufoca. Um cheirinho de desautorizado, subversivo, provocador e desobediente à lógica heteronormativa pode caber bem a “viado”, “sapatão”, “bicha”, “saboeira”, etc . Eu, pelo menos, não pretendo, nem quero, ser um Bebê Johnson de tão limpinho.
Antes de comentar o caso ocorrido no jogo entre Sport e Santa Cruz, permita-me apresentar-lhe o personagem da foto.
Ao lado da caneta está um sinalizador do tipo que costumava ser usado nos estádios brasileiros.
Foi proibido a partir de 2013, depois da aprovação de uma PL apresentada pelo deputado Décio Lima (PT-SC). O uso desse artefato se tornou crime passível de dois a quatro anos de prisão, mais multa.
De lá até cá é recorrente a situação de problemas envolvendo o uso de sinalizadores, gerando inclusive conflito entre torcedores do mesmo time, uma vez que tem se revertido em punição aos clubes (jogo de portões fechados ou longe do estádio de origem).
Nunca se soube de uma morte, ou mesmo lesão, causada pelo uso desse tipo de sinalizador. Seja ao seu portador, seja a outros presentes nos estádios.
O texto de apresentação da PL se valia de um caso ocorrido na Bolívia, que vitimou uma criança, a partir do uso irresponsável de um “sinalizador naval”, artefato muito maior, quase inexistente no Brasil e raramente usado em estádios de futebol.
O “sinalizador naval” em questão é um artefato que se projeta, como um rojão, mede 30 cm e pesa meio quilo. Medidas muito diferentes de um sinalizador do tamanho e peso de uma caneta.
O deputado Décio Lima nunca teve relação com o futebol, nem como torcedor, nem como dirigentes, nem como estudioso. É de Blumenau, cidade cujo estádio não cabe mais de 5 mil torcedores, e diz muito sobre seu conhecimento acerca de eventos de massas.
No dia 7 de março, no jogo entre Sport e Santa Cruz, na Ilha do Retiro, esse artefato voltou a ser motivo de polêmica. Ao que constam a maioria dos depoimentos, o Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar de Pernambuco se dirigiu à arquibancada da torcida visitante de modo a coibir o uso de um sinalizador (não um naval, mas o do tamanho de uma caneta).
Com procedimento de praxe do destacamento, a abordagem violenta assustou torcedores, que tentaram fugir do tumulto, gerando um efeito de bola-de-neve, típico de situações de pânico em eventos de massa – quando não se sabe a origem ou a razão do tumulto e busca-se sempre se afastar a todo custo.
O resultado foi o ferimento de mais de 70 torcedores do Santa Cruz, incluindo fraturas expostas, crianças machucadas e desmaios. Dois torcedores internados em estado grave.
O que vem depois desse ocorrido é uma situação de descontrole de proporções incalculáveis. Torcedores revoltados jogavam objetos na PM; policiais incapazes de compreender a situação reprimiam torcedores já machucados que tentavam acessar o campo para serem atentidos pelas equipes de socorro; e, o mais grave de tudo: o jogo não apenas não foi suspenso, como voltou a acontecer com os feridos ainda em campo.
O procedimento geralmente adotado em caso de sinalizadores acesos em estádios é a interrupção do jogo, pelo juiz, até que os artefatos sejam apagados. Um único sinalizador tende a durar cerca de 3 minutos quando aceso, sendo que o jogo já estava se encaminhando para o intervalo, portanto não atrapalharia a partida.
Mas para a além da abordagem policial desnecessária e irresponsável, fora dos padrões de solução de problemas do tipo, e da culpabilização criminalizadora das torcidas organizadas em um caso em que a torcida não teve qualquer culpa; segue a pergunta: Por que diabos ainda não se explicou que esses sinalizadores são inofensivos?
Praticamente nenhum outro país da América do Sul se deu ao trabalho de reprimir o uso de sinalizadores, apenas o Chile, em um plano mais amplo de criminalização das barras. No Brasil, sua proibição tem causado muito mais problema do que a liberação. Os sinalizadores continuam inofensivos.
Aos tantos colegas de imprensa que se apressaram em condenar as torcidas organizadas como causadoras do tumulto ficam as perguntas: quem disse que foi um membro da Inferno Coral que acendeu o sinalizador? Como é possível acreditar que uma abordagem minimamente humana não causaria tamanho desastre? Para que piorar uma situação cujo começo, meio e fim são sabidos por todos?
E para todos os torcedores: para que manter tal proibição se a única finalidade dos usuários de sinalizadores é fazer a festa nos estádios?
Talvez seja porque a fumaça, caso entre em campo, pode atrapalhar a visibilidade do jogo e comprometer a transmissão televisiva, atrasar o jogo e prejudicar a grade da progamação. Mas pode ser apenas suposição minha. Talvez. Até porque essa suposição nunca é colocada nas mesas redundantes dos intermináveis debates de jornalistas homens brancos da imprensa esportiva brasileira.
Para finalizar nossa visita ao país do nordeste africano, tratamos dos últimos 500 anos de História, da formação do Eyalet até a Revolta da Praça Tahir, no contexto da Primavera Árabe.
Também observamos como o Egito resistiu ao neo-colonialismo europeu e serviu de palco de batalhas nas Guerras Napoleônicas e na Segunda Guerra Mundial, além de ser epicentro do pan-arabismo durante a Guerra Fria.
Já em relação ao futebol, o principal clássico da capital, entre Al-Ahly e Zamalek, simbolizava a luta política entre nacionalistas e estrangeiros, mas atualmente os torcedores rivais se uniram para combater os seguidos regimes militares.
O futebol tem suas efemérides. A Deste ano é a memória dos 100 anos do primeiro clássico rei cearense, que ocorreu em Dezembro de 1918.
Organizado pela Liga Metropolitana Cearense de Futebol, o esporte era uma prática aristocrática que nem bem vista era, as corridas de cavalo no Campo do Prado atraiam muito mais olhares do que o ludopédio.
Daí surge a pergunta: O que tem de clássico os jogos entre Ceará e Fortaleza? Eu como torcedor do Vozão reconheço que não são apenas três pontos que estão em disputa. Isso ocorre nos 90 minutos. Ganhar do rival é ter a possibilidade de celebrar, fazer meme, “frescar” com o outro, sem perder a compostura. É um ponto fundamental na construção da identidade clubística do aficionado. Como disse o sociólogo Maurício Murad: O ato de “ser” um time ou de torcer por ele, ou ainda, de “pertencer” uma coletividade esportiva.
Dentre os vários clássicos rei que acompanhei, gostaria de destacar apenas um, que foi pela série B de 2001, no Estádio Presidente Vargas. Esse clássico era rodeado por inúmeros elementos que fazem dele uma recordação marcante para as duas torcidas.
Antes da partida iniciar, toda a imprensa lembrava o que o torcedor do Ceará queria esquecer. O tabu de 16 jogos que o Ceará não derrotava o Fortaleza.
A partida foi realizada no dia 9 de Setembro, o Ceará jogou com Jefferson, Hilton, Alan, João Lima, Marcelo (Evaldo), Lopes, Garrinchinha, Edinho, Jairo Lenzi (Thiaguinho), Sérgio Alves e Iarley, o técnico era Flávio Araújo.
Daniel Frasson sofre falta dentro da área e o árbitro assinala pênalti em favor do Fortaleza, que Reginaldo cobra e o goleiro Jefferson defende, garantindo a igualdade do placar.
Bola no travessão, bola alçada na área, falta e nada mais acontecia para que o placar fosse mudado. A torcida do adversário aos 43 minutos do 2º tempo já iniciava a contagem, como era de costume, do número de jogos sem perder pro Ceará.
E numa jogada individual, Thiaguinho (nome de craque) que havia entrado no 2º tempo no lugar de Jairo Lenzi, tenta entrar dentro da área, e perseguido por três jogadores do FEC é derrubado dentro da área por Moisés Teixeira e o árbitro assinalou pênalti.
A torcida adversária se cala.
Para a contagem.
Sérgio Alves, o maior atacante que vi jogar pelo Ceará pega a bola. Bota na marca da cal. O time que defendia o tabu já havia perdido pênalti na mesma baliza. Só que com o “carrasco” não tem aperreio, o cabra tinha sangue frio, e sendo contra o Fortaleza, aí é que ele era letal.
O artilheiro do Brasil naquele ano converteu aos 47 MINUTOS do 2º tempo.
Era o fim do tabu, pra quem gosta de tabu. Eu que gosto do Ceará, vibrei pela vitória sobre nosso maior rival (nos acréscimos). Mais uma vitória em clássico rei.
Ceará, tua glória é lutar.
Thiago Oliveira Braga. Torcedor do Ceará S.C. desde a década de 1990, graduado em Filosofia pela UECE e História pela UFC.
Voltamos à América Latina, para tratar de um país que neste ano fará sua estreia em Copa do Mundo: o Panamá! Desde a chegada dos colonizadores espanhóis, o istmo tinha uma posição estratégica na circulação de riquezas, algo que foi potencializado com a construção do Canal, no final do século XIX, quando a região ainda pertencia à Colômbia.
Após a Crise do Panamá (1885) e a Guerra dos Mil Dias (1899-1902), o Panamá tornou-se independente, mas viu a influência dos Estados Unidos aumentar gradativamente, inclusive com a administração norte-americana em uma das maiores obras de engenharia da Idade Contemporânea.
Apesar do beisebol e boxe ocuparem um espaço maior no imaginário lúdico panamenho, o atual presidente Juan Carlos Varela declarou feriado nacional, após a classificação da Marea Roja ao Mundial a ser disputado na Rússia!
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Abrindo o ano de 2018, voltamos com a segunda parte sobre o centenário das revoluções ocorridas na Rússia de fevereiro a outubro de 1917 e também sobre a História do país. Apresentamos os antecedentes revolucionários, como a Guerra Russo-Japonesa, a Revolução de 1905 e a Primeira Guerra Mundial.
Também passamos pelos principais acontecimentos do ano de 1917 e de lá para a formação da União Soviética e o peso da Rússia dentro da URSS, a partir dos diferentes períodos soviéticos, sua política externa e seu desenvolvimento econômico.
De lá vamos para a Rússia independente, com a dissolução “não intencional” da URSS por Gorbachev, o choque econômico com Iéltsin e a ascensão de Putin.
E claro, abordamos o futebol da Rússia independente, seus campeões, principais jogadores, títulos continentais e o breve retrospecto da seleção do país que sediará a atual Copa do Mundo.
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Mais uma edição especial para você ouvir durante as celebrações de final de ano. O tema é a trégua de Natal de 1914. Não sabe do que se trata? Não conhece o clipe de Paul McCartney? Vamos contar o que foi e como, mais uma vez, o esporte ajuda a explicar a sociedade e a História.
Falando em História, se era uma trégua, era uma pausa no que? Na Primeira Guerra Mundial, um dos maiores conflitos da humanidade. Vamos explicar as principais origens e desdobramentos da guerra e por qual motivo tivemos uma trégua apenas em 1914. Então, prepare a comilança, reúna a família, encha os copos e dê play no seu podcast de História preferido!
Sou um torcedor tradicional. Gosto quando meu time ganha, não gosto quando perde. Nas derrotas eu evito lembrar que meu time perdeu, por isso me mantenho alheio às notícias e comentários sobre a partida. Nas vitórias faço o contrário. Estendo no tempo o prazer do resultado positivo, consumindo uma dose a mais da programação esportiva que a imprensa nos oferece.
Foi o que fiz na manhã de 20 de abril do ano corrente. Na véspera, o Internacional havia eliminado o Corinthians nos pênaltis pela Copa do Brasil em um jogo sufocante e carregado de importância para uma torcida que andava de cabeça baixa, recém rebaixada para a Série B.
Sofremos um gol logo no começo, mas surpreendentemente não nos abalamos. Fomos ao ataque, meio de qualquer jeito, é verdade, mas com uma paciência inédita para estes tempos de agonia. Quase no final do jogo o uruguaio Nico Lopez nos arrumou o empate, para Marcelo Lomba ser o herói da classificação nos pênaltis. O grito ainda está preso na garganta: quem tem criança pequena em casa sabe do que falo.
Naquela manhã, procurei esticar o deleite da classificação sobre um time que havia se tornado um rival colorado nos últimos tempos, por razões que não vêm ao caso. Liguei então no Redação Sportv, a melhor mesa redonda da televisão e eventual companhia das manhãs de trabalho. Programa feito desde o centro do país, é claro que falava mais sobre o time eliminado do que sobre o time classificado, mas quanto a isso já estamos acostumados, ainda que seja estranho veículos que se pretendem nacionais tratarem praças como Rio Grande do Sul, Bahia ou Pernambuco como se fossem longínquos departamentos da Venezuela.
Mas o estranhamento maior não vinha daí. Os comentários davam a impressão de que eu havia visto um jogo diferente. Os comentaristas estavam muito preocupados com a baixa qualidade técnica da partida, principalmente do lado corintiano, que teria abdicado de jogar após fazer o gol. De fato, não havia sido o jogo de muito brilho técnico, mas parecia que só aquilo não contava toda a história sobre a noite no Itaquerão.
Segui em frente. Talvez ao meio-dia, na Rádio Guaíba de Porto Alegre, eu ouvisse comentários mais próximos ao jogo que eu, pelo menos, havia visto. Mas qual não foi minha decepção quando percebi que os comentaristas davam muita importância ao número de vezes que o Inter levantara bolas na área e o quanto isso era preocupante em termos de mecânica de jogo e não sei mais o quê. Para eles, o jogo também havia sido ruim.
Errados eles não estavam. O Corinthians de fato recuara de mais e, do lado do Inter, a demissão de Antônio Carlos Zago um mês depois confirmaria que o time não vinha bem. Os dados do Footstats mostram que o Internacional levantou 43 bolas na área naquela noite de abril, um número realmente alto e indicativo de um problema que se arrastou ao longo da temporada. Porém, para efeitos de comparação, a final da mesma Copa do Brasil entre Flamengo e Cruzeiro teve mais bolas na área e menos finalizações a gol. De qualquer forma, ninguém discorda que o jogo do Itaquerão esteve longe de ser um dos melhores da temporada. A questão é outra: o jogo havia sido apenas isso?
Não pense que eu esperasse exaltações à classificação colorada que agradassem meu coração torcedor. Nada disso. O que me impressionou naqueles dias foi a redução da partida, carregada de significados e simbologias, ao que diziam os scouts.
Um time recém caído à segunda divisão havia eliminado aquele que se tornara um grande rival nos últimos anos, com provocações inclusive institucionais de parte a parte. O jogo pode não ter sido belo, mas foi uma partida empolgante para os envolvidos e consideravelmente interessante para quem assistia de sangue doce. Eis uma beleza do futebol: um jogo tecnicamente ruim pode ser um grande acontecimento. Nos programas esportivos, porém, tudo isso foi reduzido a um pebolim com número excessivo de bolas alçadas à área.
O movimento de oxigenação da análise esportiva é inegavelmente positivo. Não há mais como acompanhar um jogo sem uma boa análise que nos ajude a enxergar os movimentos e as estratégias de cada time. O comentário fanfarrão e desinformado é cada vez mais coisa do passado. Como ninguém está livre de crítica, faço uma modesta a esta ótima geração de comentaristas: na ânsia de se afastarem da geração anterior, estão fazendo uma análise tão limitada quanto a que desejam combater.
A linguagem hermética é apenas um aspecto dessa ânsia pela diferenciação. Parece que é obrigatório falar em time alternativo no lugar de time reserva, um time que troca passes virou um time associativo e todo e qualquer drible é transformado numa quebra da linha defensiva. O uso de palavras-chave, que em muitos casos mais confunde do que explica, parece ser um meio de reforçar a identidade e mostrar a que turma o comentarista pertence. Outro aspecto que mostra como é perigoso esse desejo por parecer diferente é o apego exagerado a conceitos mesmo quando a realidade acaba desmentindo as teses. Renato Portaluppi fez o Grêmio jogar o melhor futebol da América do Sul, mas ainda há quem tenha vergonha de admitir. Conceitos são importantes, mas é importante não ignorar os fatos.
Essas questões foram debatidas ao longo do ano por jornalistas esportivos e é sempre saudável uma autocrítica, mas me parece que a discussão ficou muito centrada na linguagem mais adequada para se comunicar a análise tática. Além de soar um pouco arrogante, na medida em que o problema seria apenas o de fazer a plebe entender os conceitos, reduzir a discussão à linguagem não chega àquele que, na minha modesta opinião de espectador de futebol, é o ponto central do problema.
Voltando à manhã seguinte à classificação do Inter , o ponto central da discussão é que talvez os analistas táticos estejam produzindo uma visão parcial do jogo, ou vendo menos quando acham que estão vendo mais. É claro que futebol é um jogo tático e para analisar o que acontece num jogo é preciso saber de tática. Só que no futebol também jogam a pressão da torcida, os gramados ruins, o estado de espírito dos jogadores, os vestiários, os gabinetes e mais fatores do que supõe nossa vã prancheta tática. Mais importante que isso: futebol não é só o que acontece em campo, mas os significados do que acontece em campo. Há histórias em jogo, tradições à prova, simbologias a serem preservadas ou recuperadas, rivalidades que dão peso muito maior ao resultado de campo.
Se um alquebrado Internacional consegue eliminar o Corinthians fora de casa, eu não quero exaltações à superação colorada. Mas não queiram que uma fria análise de números e movimentos de jogadores explique tudo o que aconteceu em campo.
*Daniel Cassol é jornalista fundador do Impedimento e do Puntero Izquierdo, e torcedor da parte vermelha de Porto Alegre
Depois de um longo inverno, o podcast que desvenda os mistérios do Planeta Bola volta com um episódio bastante esperado pela nossa audiência, no caso o centenário das revoluções ocorridas na Rússia de fevereiro a outubro de 1917.
Nesta primeira parte, contextualizamos a formação da Rússia – sobretudo da região a oeste dos Montes Urais – e a chegada dos eslavos, que disputaram o território com mongóis e túrquicos, até a consolidação de Moscou como capital e a dinastia dos Romanov, a partir de 1613.
Também abordamos como o futebol chegou às cidades portuárias de Odessa e São Petersburgo, através dos marinheiros britânicos, e se espalhou pelas estepes. Destacamos os resultados das seleções do Império Russo e da União Soviética, bem como os principais clubes e jogadores surgidos no século passado.
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